CAPÍTULO 77
A lembrança sempre começava do mesmo jeito.
Ele estava caindo da ribanceira... despencando de costas em direção a um rio coberto de gelo. Acima dele, os impiedosos olhos cinzentos de Peter Solomon olhavam para baixo por sobre o cano da pistola. Enquanto Andros caía, o mundo lá em cima ia ficando menor, até que tudo desapareceu quando ele foi engolido pela bruma que se erguia da queda d'água rio acima.
Por um instante tudo ficou branco, como o paraíso.
Então ele se chocou com o gelo.
Frio. Escuridão. Dor.
Estava no meio de um turbilhão... sendo arrastado por uma força poderosa que golpeava sem dó contra as pedras em meio a um vazio inimaginavelmente gélido. Seus pulmões ansiavam por ar, mas o frio fizera os músculos de seu peito se contraírem de forma tão violenta que ele sequer conseguia inspirar.
Estou debaixo do gelo.
Aparentemente, o gelo perto da cascata era fino por causa da turbulência da água e Andros o atravessara ao cair. Agora, estava sendo levado correnteza abaixo, encurralado sob um teto transparente. Arranhou a superfície inferior da parede de gelo para tentar se libertar, mas ela era lisa demais. A dor lancinante do buraco de bala em seu ombro estava evaporando, assim como a ardência provocada pelo chumbinho. Só restava o latejar insuportável de seu corpo ficando dormente.
A correnteza, cada vez mais veloz, projetava-o em disparada por uma curva no rio. Seu corpo clamava por oxigênio. De repente, se viu emaranhado em galhos, preso em uma árvore que caíra dentro d'água. Pense! Tateou freneticamente o galho para subir em direção à superfície e encontrou o ponto onde este havia penetrado o gelo. As pontas de seus dedos encontraram o diminuto espaço de água ao redor do galho e ele forçou as bordas, tentando aumentar o furo. Puxou uma vez, duas vezes, e a abertura começou a crescer, ganhando vários centímetros de largura.
Apoiando-se no galho, ele inclinou a cabeça para trás e pressionou a boca contra a pequena abertura. O ar de inverno que entrou em seus pulmões pareceu quente. A súbita dose de oxigênio aumentou suas esperanças. Ele plantou os pés no tronco da árvore e empurrou com força para cima, usando as costas e os ombros. O gelo em volta da árvore caída, perfurado por galhos e outros sedimentos, já estava enfraquecido e, quando ele forçou as pernas musculosas contra o tronco, sua cabeça e seus ombros conseguiram quebrá-lo, fazendo Andros irromper na noite invernal. Seus pulmões se encheram de ar. Com a maior parte do corpo ainda submersa, ele se contorceu desesperadamente, fazendo força com as pernas, puxando com os braços, até por fim conseguir sair da água e se deitar, ofegante, em cima do gelo liso.