--Se não estaes satisfeitos, volvi eu ainda, se em vez d’um gamo me quereis vêr matar um homem, que um de vós se colloque além sobre as pedras ou mais longe, e o raio irá ter com elle.
Houve um movimento geral dos Kakuanas, recuando e protestando.
--Não! Não! Gritaram alguns. Acreditámos, acreditámos... Não vale a pena gastar feitiços com nós outros, que acreditámos e que somos amigos!
O velho guerreiro interveio, com alacridade:
--Assim é! Nós somos amigos. E para que nos conheçaes bem, oh almas das estrellas, que trovejaes e mataes tão de longe, sabei que eu sou Infandós, filho de Kafa, antigo rei dos Kakuanas. Este moço é Scragga, filho de Tuala, nosso rei! Tuala, o homem de mil mulheres, senhor dos Kakuanas, terror dos seus inimigos, sentinella da Grande-Estrada, sabedor das artes negras, chefe de cem mil guerreiros, Tuala o supremo, Tuala o d’um-só-olho...
--Basta, interrompi sobranceiramente. Leva-nos então ao rei Tuala. Porque, nas nossas jornadas pelo mundo, nós só fallamos a reis!
--Certamente, meu senhor, certamente... Mas nós andavamos caçando n’estes sitios, e estamos a tres dias de jornada da aringa do rei. São tres dias que tendes de caminhar.
--Caminharemos. Escuta tu, porém, Infandós, e tu, Scragga, filho de Tuala! Se por acaso tentardes no caminho armar-nos uma traição, ou se essa idéa vos atravessar sequer a cabeça, nós, que tudo adivinhámos, tomaremos de vós tal vingança que fará ainda estremecer os filhos de vossos filhos. Aquelle cujo olho reluz, e cujos dentes vão e vêm, incendiará todas as vossas searas com a chamma do seu olho, e despedaçará todas as vossas carnes com as pontas das suas presas! E nós faremos resoar os canos que trovejam d’uma maneira que será pavorosa! Toda a agua seccará. Todo o gado morrerá. E os espiritos maus virão, á nossa voz, dispersar os vossos ossos... E agora a caminho.
Esta tremenda falla era quasi superflua--porque os nossos novos amigos acreditavam superabundantemente nos nossos poderes sobrenaturaes. Ainda assim o velho Infandós saudou-nos com uma reverencia mais funda e mais servil, repetindo tres vezes estas palavras: Krum! Krum! Krum! Como depois soubemos, é esta a maneira kakuana de saudar o rei. Corresponde ao Bayète! Dos Zulús.
Depois o velho atirou um gesto aos seus, que immediatamente carregaram ás costas as nossas mochilas, cantinas, mantas e outras miudezas--excepto as espingardas, de que elles se afastavam em grandes voltas e com olhares de terror.
Um d’elles lançou mão ao fato do capitão John, ainda cuidadosamente dobrado á beira d’agua. O excellente John deu logo um pulo para as calças. E rompeu então uma immensa altercação.
--Não, meu senhor, gritava Infandós, não consentirei que o meu senhor carregue com essas coisas!
--Mas é que eu quero pôr as calças! Berrava John.
--Todos somos aqui seus escravos para servir e carregar...
--Mas as calças...
--Meu senhor!...
--Larga as calças, malandro!
Tive de intervir, suffocado de riso.
--Escute, John. O caso é mais serio do que parece. Um dos motivos do terror que estamos inspirando é a sua luneta, a sua cara meia barbada e meia rapada, os seus dentes postiços, e essas pernas brancas á mostra... Tudo isso espanta as imaginações de selvagens. E se o amigo quer que não nos percam o medo, é necessario continuar a apparecer-lhes n’essa figura. Se o amigo lhes surgir ámanhã d’outro modo, tomam-nos por impostores, e a nossa vida não vale mais um pataco. Assim o viram n’esta terra, assim n’ella tem de ficar.
John, inquieto, hesitante, voltou os olhos para o barão:
--O amigo Quartelmar tem razão, affirmou o barão. E dá graças a Deus que já estavas de botas, e que a temperatura é tão dôce.