Toda essa tarde trilhamos a larga, magnifica estrada que seguia infindavelmente para o lado de noroeste. Alguns dos negros marchavam adiante (uns cem passos) como vedetas. Outros seguiam levando as nossas bagagens. Nós iamos no meio, entre Infandós e Scragga.
Pouco a pouco, Infandós e eu descahimos n’uma palestra familiar e amigavel. O velho era esperto e loquaz.
--Quem fez esta estrada, Infandós?
--Foi feita ha muito tempo, meu senhor. Ninguem sabe quando; nem mesmo uma mulher que tudo sabe, Gagula, que tem vivido através de gerações... Já ninguem póde fazer estradas assim... Mas o rei não consente que se desmanche, nem que lhe cresça a herva por cima.
--E ha quanto tempo vivem aqui os Kakuanas, Infandós?
--A nossa gente, meu senhor, veio para aqui de grandes terras que estão para além (indicava o Norte) ha mais de dez mil milhares de luas. Para baixo não puderam seguir, segundo diziam nossos avós, que o disseram a nossos paes, e segundo conta Gagula, a mulher que tudo sabe. Não puderam por causa das altas montanhas que estão em redor, e do deserto onde tudo morre. De modo que, como a terra era fertil, aqui assentaram; e tantos e tão fortes se tornaram que agora, quando Tuala, nosso rei, chama os seus regimentos, o chão treme todo com o seu peso, e até onde a vista alcança só se vêem plumas de guerreiros e lanças.
--Mas se a terra está murada de montanhas, e se não tendes visinhos, para que são tantos soldados?
--A terra está aberta para além (e indicava o Norte). E ás vezes descem de lá multidões, que não sabemos quem são, e que nós destruimos. Já correu a terça parte d’uma vida de homem desde a ultima guerra. Depois houve outra guerra, mas foi entre nós, irmão contra irmão.
--Como foi isso, Infandós?
Infandós começou então uma d’essas historias de pretendentes e de guerras dynasticas, que abundam em todos os continentes. O pae d’elle, Kapa, que era o rei dos Kakuanas, tivera por primeiros filhos, da primeira mulher (elle, Infandós, era filho d’uma concubina) dois gemeos. Ora a lei dos Kakuanas manda que de dois gemeos reaes o mais fraco seja sempre destruido. Mas a mãe, por piedade e amor, esco
ndeu o gemeo mais fraco, que se chamava Tuala, e, ajudada por Gagula, educou-o em segredo n’uma caverna. Quando Kapa morreu, o gemeo mais velho, que se chamava Imotú, foi portanto rei; e logo depois teve da sua mulher favorita um filho por nome Ignosi. Ora por esse tempo passára a guerra com os povos do Norte: os campos não tinham sido semeados; veio uma fome; e havia grande miseria e dôr entre o povo, que, como uma fera esfaimada, rosnava, procurando com os olhos sangrentos alguma coisa em redor para despedaçar. Foi então que Gagula, a mulher que tudo sabe e que não morre, rompeu a dizer que os males todos provinham de que Imotú reinava sem ser rei. Imotú a esse tempo estava doente na sua cubata, com uma ferida. Começou a correr um clamor entre o povo. Por fim, Gagula um dia reune os soldados, vai buscar Tuala, o gemeo mais novo que ella e a mãe tinham esco
ndido nas cavernas, apresenta-o ao povo, descobre-lhe a cinta, e mostra a marca real com que entre os Kakuanas os reis são marcados ao nascer--uma tatuagem representando uma cobra, que se enrosca em torno do ventre real, e vem reunir, sobre o umbigo real, a cabeça e o rabo. E ao mesmo tempo, Gagula gritava: «Eis o vosso verdadeiro rei, que eu salvei e que escondi, para elle vos vir salvar agora!» O povo, to
nto de fome, ignorando a verdade, espantado com a evidencia da marca real, largou a bradar: «Este é o rei! Este é o rei!» Alguns sabiam bem que não--e que n’este só havia impostura. Mas n’esse momento, ouvindo os alaridos, o rei Imotú sae doente e tropego da sua cubata, com a mulher e com o filho que tinha tres annos, a saber porque vinham tantos brados e porque pediam elles «o rei!» Immediatamente Tuala, o irmão, corre para elle e crava-lhe uma faca no coração! E o povo, que as acções decididas e bruscas sempre fascinam, gritou logo: «Tuala é rei! Tuala provou que é rei!» Diante d’isto a pobre mulher de Imotú agarrou o filho, o seu Ignosi, e fugiu. Ainda appareceu, passados dias, n’uma aringa, pedindo de comer. Depois viram-na seguir para os lados dos mo
ntes e nunca mais voltou.