Ergui pois a mão, e disse, com vagar e magestade:
--Já que vos perdoei, porque sois ignorantes, condescendo tambem em vos dizer quem somos. Somos Espiritos! Vivemos além, por cima das nuvens, n’uma d’aquellas estrellas que vós vêdes de noite brilhar. E viemos visitar esta terra, mas em paz e para alegria de todos!
Entre os indigenas correram grandes ah! ah! Lentos e maravilhados.
Eu prosegui, mais grave:
--Nós conhecemos todos os reis e todas as gentes. E eu, que sou a voz dos outros, conheço todas as linguas.
--A nossa bem mal! Arriscou com timidez o velho guerreiro.
Dardejei-lhe um olhar chammejante que o estarreceu. E gritei logo, para fazer uma diversão brusca áquella observação tão justa e perigosa:
--Viemos em paz, é certo! Mas fomos recebidos em guerra. E talvez devessemos castigar já o ultraje feito por esse moço, que sem provocação atirou uma faca ao Espirito divino cujos dentes de repente nascem e cahem.
--Oh não! Meu senhor! Gritou n’uma anciosa supplica o velho guerreiro. Poupai-o! Poupai-o, que é o filho do nosso rei! Eu sou seu tio, que o ajudei a crear. Só eu respondo por cada gota do sangue que lhe gira nas veias!... Oh meu senhor, a clemencia vai bem aos Espiritos!
Affectei não comprehender a angustiosa prece,--e tornei, com superior indifferença:
--As nossas maneiras de castigar são simples e terriveis. N’um instante ides vêr... Tu, escravo que nos segues (e aqui encarei para Umbopa), dá-me a arma de feitiços que troveja.
Umbopa, que assistira absolutamente impassivel e serio a todas as minhas affirmações de divindade, e que (Zulú intelligente, afeito aos brancos e ás suas manhas) lhe percebera o alcance--estendeu-me uma carabina Winchester, com humilissima reverencia.
Justamente n’esse instante avistei, para além do riacho, a umas setenta jardas de distancia, um pequeno antilope, immovel sobre um montão de rochas.
--Vêdes aquelle gamo? Exclamei eu para os selvagens. Julgaes possivel que um simples homem, nascido do ventre da mulher, o mate d’aqui d’onde estou, só com fazer estalar um pequeno trovão?
--Não é possivel! Murmurou recuando o velho guerreiro. Não é possivel para homem nascido do ventre da mulher!
--Ides vêr.
Apontei. Bum! E subitamente o gamo, dando um pulo furioso no ar, tombou morto, immovel, estatelado nas pedras.
Um fundo murmurio de assombro, de terror, passou entre os Kakuanas... Eu accrescentei simplesmente:
--Ahi está. E se tendes fome, podeis ir buscar aquelle gamo!