De repente, o barão tirou devagar o chapéo. E com profunda emoção:
--Amigos, vamos começar uma das mais estranhas jornadas que homens têm ousado tentar. O que será de nós, não sei: mas, para bem ou para mal, juntos estamos, juntos nos encontraremos sempre! E agora, antes de partir, ergamos o pensamento para Aquelle que tudo póde!
Escondeu a face entre as mãos, ficou immovel. O capitão John e eu baixámos tambem a cabeça, com reverencia, com humildade. Eu por mim, confesso, nunca fui homem de orações. Caçadores de elephantes, na dura vida d’Africa, raro se lembram de fallar a Deus. Em todo o caso, n’aquelle momento, rezei. Rezei com fervor; e senti-me depois mais alegre e mais leve. Creio que o capitão (religioso no fundo, apesar de praguejar medonhamente) tambem rezou. O barão esse era homem de piedade e crença... Quando destapou o rosto, olhou em redor, ergueu o braço,--e com um bello ar de resolução e de esperança:
--prompto?... Larga!
Os bordões resoaram na terra dura,--e largámos.
Para nos guiar no deserto tinhamos apenas as distantes montanhas de Suliman, e o roteiro que o velho D. José da Silveira traçára no pedaço de camisa. Cada um de nós trazia na algibeira uma cópia d’esse mappa rude. Mas, considerando que essas linhas tinham sido riscadas por um homem meio morto, ha trezentos annos--era bem certa a sua utilidade? A nossa salvação, n’aquella jornada, seria encontrar a lagôa, ou poça de agua salobra que o velho fidalgo portuguez marcára a meio caminho entre a aldeia d’onde partiramos e as serras de Suliman. Se a não achassemos, tinhamos certa a morte, uma morte terrivel, a morte pela sêde. E, para mim, as probabilidades de descobrir uma lagôa de tres ou quatro metros n’aquella vastidão de areia e tojo, parecia-me minima, infinitesima. Mesmo suppondo que o Portuguez a marcára com exactidão--quem nos afiançava que n’esses trezentos annos ella não seccára ou não fôra coberta pelas areias movediças?
Era n’isto que eu pensava--emquanto silenciosamente, como sombras, iamos marchando sob o luar silencioso. O caminho não era facil: o tojo denso e espinhoso retardava-nos o passo: a areia mettia-se nos sapatos, e cada meia hora deviamos parar para os esvasiar: e, apesar da noite não estar quente, havia no ar alguma coisa de pesado e de espesso, que amollentava. Mas o que sobretudo nos opprimia era a solidão, o silencio--o infinito, terrivel silencio. John ainda tentou assobiar uma cantiga galante de bordo. Mas a toada jovial, o estribilho de teus dôces olhos, parecia lugubre n’aquella severa immensidade. O engraçado homem emmudeceu. E seguimos n’uma fila muda através do matto mudo.
Perto da meia noite, sobreveio uma aventura que nos assustou--e depois nos divertiu immensamente. John, como marinheiro, levava a bussola, e marchava adiante, guiando. De repente ouvimos um berro--John desapparece! Ao mesmo tempo rompia em torno de nós uma balburdia medonha de roncos, bufos, grunhidos, sons de patas fugindo--e vemos fórmas, como garupas, galopando através do tojo, entre rolos d’areia. Os negros atiraram-se ao chão, gritando que eram «demonios acordados»! Eu proprio e o barão ficámos surprezos:--e o nosso assombro cresceu quando avistámos John, apparentemente montado n’um potro, fugindo aos galões para o lado dos montes, e ganindo como um desesperado. Um momento mais--e vêmol-o sacudir os braços no ar, e de novo desapparecer, no matto baixo, com um baque tremendo. Corremos para elle e percebemos o caso estranho: tinhamos ido cahir no meio d’um rebanho de zebras adormecidas: John estatelára-se exactamente sobre as costas d’uma, enorme: e o bicho, pulando espavorido, abalára com o nosso amigo nas ancas. Felizmente não se magoára no tombo final: fomos dar com elle sentado na areia, de monoculo firmemente cravado no olho, aturdido, indignado--mas intacto de pelle e osso.