--Com certeza!... De resto, todos nós vimos já muitas vezes a morte diante dos olhos. É um detalhe; para que se ha de insistir n’elle? Viemos á Africa com certo fim. Ha perigos? Acabou-se. Deus é grande.
--Está tudo portanto decidido, conclui eu, e parece-me que chegou a occasião d’um grog.
Fomos ao grog.
No dia seguinte desembarcámos. Alojei os meus amigos n’uma «barraca» que possuo na Berea, e a que chamo em dias d’orgulho «a minha casa». É construida de tijolo, com um telhado de zinco que abriga tres quartos e uma cozinha. Em redor, porém, está plantado um bom jardim, com esplendidas arvores e flôres, que um dos meus caçadores, chamado Jack, traz lindamente tratadas. É um pobre homem a quem um bufalo esmigalhou a perna na terra dos Sikukunes. Já não póde seguir a caça; mas na sua qualidade de Griqua, jardina bem--coisa que um Zulú nunca faria decentemente. O Zulú tem horror ás artes da paz.
O barão e o seu amigo dormiram n’uma tenda que lhes armei no jardim (dentro de casa não havia espaço), no meio do laranjal. Aqui em Durban as laranjeiras têm ao mesmo tempo a flôr e o fructo: de sorte que com o perfume todo em torno, e o brilho das laranjas côr d’ouro, e o murmurio d’aguas correntes, o sitio era aprazivel e grato. Ha peor na Europa.
Logo no dia seguinte, sem mais tardança, começámos os preparativos. Antes de tudo fomos ao tabellião lavrar a escriptura em que o barão se obrigava a pensionar o meu rapaz: houve difficuldade por jazerem em Inglaterra as propriedades do barão: mas arranjou-se uma «tangente», e segura, graças ás artes de um Advogado, que pelos seus serviços apresentou a conta infame de vinte libras! Depois recebi o meu cheque de quinhentas libras. Satisfeita assim a prudencia, passámos a comprar o carrão e as juntas de bois. Descobrimos um carrão excellente, com eixos de ferro, solido e leve, que já fizera uma excursão a Lourenço Marques--o que garantia a firmeza e resistencia das madeiras. Era um carrão dos que chamamos de meia-tenda--isto é, toldado sómente até ao meio, e aberto em frente para as bagagens. Sob o toldo tinha almofadões onde podiam dormir bem duas pessoas: além d’isso suspensões para as espingardas e bolsos de guardar roupa. Custou-nos cento e vinte e cinco libras, e sahiu barato. As juntas de bois eram dez, magnificas. Ordinariamente para uma jornada atrellam-se oito juntas: mas para uma aventura d’estas, vinte bois não vão de mais. Todos eram de raça zulú, a mais pequena d’Africa, mas a melhor; e todos elles salgados. Chamamos aqui salgados aos bois já muito jornadeados pelo sul d’Africa, e á prova portanto da «agua vermelha»--que destroe ás vezes todas as juntas d’um carrão. Além d’isso, todos tinham sido vaccinados contra a maleita de pulmões, fórma horrivel de pneumonia, que é n’estas terras um flagello para o gado.
Em seguida organisámos provisões e remedios. Este detalhe demandava sciencia e cuidado, porque convinha, n’uma empreza tão accidentada, que nem faltasse o necessario, nem o carrão partisse abarrotado e carregado em demasia. Para os remedios foi-nos de grande utilidade o capitão John, que em tempos estudára para medico da Armada, e que (além de possuir, muito a proposito para nós, um estojo de cirurgia e uma pharmacia de viagem) conservára conhecimentos genericos e uma toleravel pratica. Durante a nossa estada em Durban cortou elle o dedo pollegar a um Cafre com uma maestria--que fazia appetite vêr! O que o perturbou foi o Cafre (que observára a operação em perfeita impassibilidade) pedir-lhe depois para lhe pôr outro dedo novo.